
Unformatted text preview: I CHING O LIVRO DAS
MUTAÇÕES I CHING
O LIVRO DAS MUTAÇÕES Tradução do chinês para o alemão,
introdução e comentários
RICHARD WILHELM Prefácio C. G. Jung
Introdução à edição brasileira
Gustavo Alberto Corrêa Pinto Tradução para o português
Alayde Mutzenbecher
e
Gustavo Alberto Corrêa Pinto Título original: I Ging - Das Buch der Wandlungen.
Copyright © 1956 Eugen Diederichs Verlag Düsseldorf, Köln.
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convencionais ou eletrônicos citados neste livro. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara
Brasileira do Livro, SP, Brasil) I Ching : o livro das mutações / tradução do chinês para o alemão, introdução e
comentários Richard Wilhelm ; prefácio C. G. Jung ; introdução à edição brasileira Gustavo
Alberto Corrêa Pinto ; tradução para o português Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa
Pinto. — São Paulo : Pensamento, 2006.
Título original : I Ging : das Buch der Wandlungen
23ª reimpr. da 1" ed. de 1984 ISBN 85-315 - O314 - O
1. Adivinhação 2. I Ching I. Wilhelm, Richard, 1873-1930. II. Jung, Carl Gustav, 18751961. III. Pinto, Gustavo Alberto Corrêa.
06-7961 CDD-299.51482
Índices para catálogo sistemático:
1. I Ching : Livros sagrados chineses 299.51482 O primeiro número à esquerda indica a edição, ou reedição, desta obra. A primeira dezena à direita
indica o ano em que esta edição, ou reedição foi publicada.
Edição
Ano
23-24-25-26-27-28-29-30
11-12 06 - O7 - O8 - O9-10- Direitos reservados
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ESQUEMA DE IDENTIFICAÇÃO DOS
HEXAGRAMAS EM SUA FUNÇÃO ORACULAR 5 Para compor o hexagrama, basta seguir os dois trigramas que o formam; o ponto
de encontro dos mesmos indica o número do hexagrama desejado. ÍNDICE DOS HEXAGRAMAS SUMÁRIO Prefácio à Edição Brasileira (Gustavo Alberto Corrêa Pinto)
Prefácio à Primeira Edição (Richard Wilhelm)
Introdução (Richard Wilhelm)
Esquema de Identificação dos Hexagramas em sua Função Oracular
Índice dos Hexagramas
Prefácio de C. G. Jung
Esquema de identificação dos hexagramas
Índice dos Hexagramas
Capa 1
3
5
6
15 LIVRO PRIMEIRO: O TEXTO
Primeira Parte
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30. Ch’ien
K'un
Chun
Meng
Hsu
Sung
Shih
Pi
HsiaoCh'u
Lu
Tai
Pi
Tung Jên
Ta Yu
Ch'ien
Yu
Sui
Ku
Lin
Kuan
Shih Ho
Pi
Po
Fu
Wu Wang
Ta Ch'u
I
Ta Kuo
K'an
Li O Criativo
O Receptivo
Dificuldade Inicial
A Insensatez Juvenil
A Espera (Nutrição)
Conflito
O Exército
Manter-se Unido (Solidariedade)
O Poder de Domar do Pequeno
A Conduta (Trilhar)
Paz
Estagnação
Comunidade com os Homens
Grandes Posses
Modéstia
Entusiasmo
Seguir
Trabalho Sobre o que se Deteriorou
Aproximação
Contemplação (a Vista)
Morder
Graciosidade (Beleza)
Desintegração
Retorno (o Ponto de Transição)
Inocência (o Inesperado)
O Poder de Domar do Grande
As Bordas da Boca (Prover Alimento)
Preponderância do Grande
O Abismai (Água)
Aderir (Fogo) 29
33
37
40
43
45
48
50
53
56
58
61
63
66
68
71
74
76
78
81
84
87
89
91
94
96
98
101
103
106 Segunda Parte
31.
32.
33.
34.
35.
36.
37.
38.
39.
40.
41.
42.
43.
44.
45.
46.
47.
48.
49.
50.
51.
52.
53.
54.
55.
56.
57.
58.
59.
60.
61.
62.
63.
64. Hsien
Heng
Tun
Ta Chuang
Chin
Ming I
Chia Jen
K'uei
Chien
Hsieh
Sun
I
Kuai
Kou
Ts'ui
Shêng
K'un
Ching
Ko
Ting
Chên
Kên
Chien
Kuei Mei
Fêng
Lü
Sun
Tui
Huan
Chieh
Chung h'u
Hsiao Kuo
Chi Chi
Wei Chi A Influência (Cortejar)
Duração
A Retirada
0 Poder do Grande
Progresso
Obscurecimento da Luz
A Família
Oposição
Obstrução
Liberação
Diminuição
Aumento
Irromper (a Determinação)
Vir ao Encontro
Reunião
Ascensão
Opressão (a Exaustão)
O Poço
Revolução
O Caldeirão
O Incitar (Comoção, Trovão)
A Quietude (Montanha)
Desenvolvimento (Progresso Gradual)
A Jovem que se Casa
Abundância (Plenitude)
O Viajante
A Suavidade (o Penetrante, Vento)
Alegria (Lago)
Dispersão (Dissolução)
Limitação
Verdade Interior
A Preponderância do Pequeno
Após a Conclusão
Antes da Conclusão 109
111
113
116
118
120
122
125
128
130
132
135
138
141
143
146
148
151
153
156
159
161
164
167
170
172
174
177
179
182
184
188
191
194 LIVRO SEGUNDO: O MATERIAL
Introdução
Shuo Kua: Discussão dos Trigramas
Capitulo I
Capitulo II
Capitulo III
Ta Chuan: O Grande Tratado (O Grande Comentário) 199
203
203
205
210
217 Primeira Parte
A. Os Fundamentos
I. As Mutações no Universo e no Livro das Mutações
II. Sobre a Composição e Uso do Livro das Mutações 217
222 B. Argumentos
III. Sobre as Palavras Atribuídas aos Hexagramas c às Linhas
IV. Implicações mais Profundas do Livro das Mutações
V. O Tao em sua Relação com o Poder Luminoso e com o Poder Obscuro
VI. O Tao Aplicado ao Livro das Mutações
VII. Os efeitos do Livro das Mutações Sobre o Homem
VIII. Sobre o Uso das Explicações Adicionais
IX. Sobre o Oráculo
X. O Quádruplo Uso do Livro das Mutações
XI. Sobre as Varetas de Caule de Milefólio, os Hexagramas e as Linhas
XII. Síntese 224
226
228
231
232
233
236
240
242
246 Segunda Parte
I. Sobre os Signos, as Linhas, a Criação e a Ação
II. História da Civilização
III. Sobre a Estrutura dos Hexagramas
IV. Sobre a Natureza dos Trigramas
V. Explicação de Determinadas Linhas do Livro das Mutações
VI. Sobre a Natureza do Livro das Mutações em Geral
VII. A Relação de Certos Hexagramas com a Formação do Caráter
VIII. Sobre o Uso do Livro das Mutações
IX. As Linhas (cont.)
X. As Linhas (cont.)
XI. O Valor da Cautela como Ensinamento do Livro das Mutações
XII. Síntese 249
251
256
257
257
261
262
264
265
267
267
268 A Estrutura dos Hexagramas
1. Considerações Gerais
2. Os Oito Trigramas e suas Aplicações
3. O Tempo
4. As Posições
5. O Caráter das Linhas
6. Relações das Linhas Entre Si
7. As Linhas Diretrizes dos Hexagramas 271
271
273
273
274
274
276 Sobre a Consulta Oracular
1. O Oráculo de Varetas de Caule de Milefólio
2. Oráculo de Moedas 276
278 LIVRO TERCEIRO: OS COMENTÁRIOS
Primeira Parte
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
13.
14.
15.
16.
17.
18.
19.
20.
21.
22.
23.
24.
25.
26.
27.
28.
29.
30. Ch'ien
K’un
Chun
Mêng
Hsu
Sung
Shih
Pi
Hsiao Ch’u
Lu
Tai
P'i
Tung Jên
Ta Yu
Ch'ien
Yu
Sui
Ku
Lin
Kuan
Shih Ho
Pi
Po
Fu
Wu Wang
Ta Ch’u
I
Ta Kuo
K’an
Li O Criativo
O Receptivo
Dificuldade Inicial
Insensatez Juvenil
A Espera (Nutrição)
Conflito
O Exercito
Manter-se Unido (Solidariedade)
O Poder de Domar do Pequeno
Conduta (Trilhar)
Paz
Estagnação
Comunidade com os Homens
Grandes Posses
Modéstia
Entusiasmo
Seguir
Trabalho Sobre o que se Deteriorou
Aproximação
Contemplação (a Vista)
Morder
Graciosidade (Beleza)
Desintegração
Retorno (o Ponto de Transição)
Inocência (o Inesperado)
O Poder de Domar do Grande
As Bordas da Boca (Prover Alimento)
Preponderância do Grande
O Abismai (Água)
Aderir (Fogo) 283
294
302
307
310
314
317
320
324
327
331
335
338
342
345
348
352
355
359
362
365
368
372
375
378
382
385
388
392
396 Segunda Parte
31.
32.
33.
34.
35.
36.
37.
38.
39.
40. Hsien
Heng
Tun
Ta Chuang
Chin
Ming I
Chia Jen
Kuei
Chien
Hsieh Influência (Cortejar)
Duração
A Retirada
O Poder do Grande
Progresso
Obscurecimento da Luz
A Família
Oposição
Obstrução
Liberação 399
402
405
408
411
414
418
421
425
428 41.
42.
43.
44.
45.
46.
47.
48.
49.
50.
51.
52.
53.
54.
55.
56.
57.
58.
59.
60.
61.
62.
63.
64. Sun
I
Kuai
Kou
Ts'ui
Shêng
K'un
Ching
Ko
Ting
Chên
Kên
Chien
Kuei Mei
Fêng
Lü
Sun
Tui
Huan
Chieh
Chung Fu
Hsiao Kuo
Chi Chi
Wei Chi Diminuição
Aumento
Irromper (a Determinação)
Vir ao Encontro
Reunião
Ascensão
Opressão (a Exaustão)
O Poço
Revolução
O Caldeirão
O Incitar (Comoção, Trovão)
A Quietude (Montanha)
Desenvolvimento (Progresso Gradual)
A Jovem que se Casa
Abundância (Plenitude)
O Viajante
A Suavidade (o Penetrante, Vento)
Alegria (Lago)
Dispersão (Dissolução)
Limitação
Verdade Interior
A Preponderância do Pequeno
Após a Conclusão
Antes da Conclusão As Diversas Partes do Livro das Mutações
Os Hexagramas Dispostos por Casas 431
435
440
444
447
451
454
457
461
465
469
472
476
480
484
487
491
495
498
501
504
507
511
514
518
519 A Editora Pensamento agradece o alto idealismo de Alayde
Muizenbecher e de Gustavo Alberto Corrêa Pinto,
cuja dedicação tornou possível esta edição do I CHING,
e à Editora Vozes Ltda., por ter-nos permitido reproduzir
o prefácio de C. G. Jung. PREFÁCIO A EDIÇÃO BRASILEIRA Sobre o conceito de mutações
O que hoje conhecemos com o nome de I Ching, o Livro das Mutações, surgiu
no período anterior à dinastia Chou (1150-249 a.C), com figuras lineares, compostas
de linhas inteiras e linhas interrompidas, superpostas em conjuntos de três e seis
linhas, chamados "Kua" (signo). James Legge, em sua tradução do I Ching (The
Sacred Books of lhe East, XVI: The Yi King, Oxford, 1882), cunhou os termos
"trigrama" e "hexagrama" para designar os Kua compostos por, respectivamente, três
e seis linhas. Esses termos têm sido adotados por vários estudiosos do I Ching, uma
vez que possibilitam a distinção dos dois diferentes tipos de Kua. (Na presente
tradução, adotamos também esses termos.) Nessas figuras lineares, estavam as
sementes da cultura, de extraordinária complexidade e riqueza, que, ao longo dos
milênios seguintes, viria a se desenvolver na China. A sabedoria contida nos Kua
veio a exercer uma influência decisiva nos rumos futuros da civilização chinesa. A
tradição desses Kua era, até meados da dinastia Chou, identificada com a designação
“I” (
), um ideograma de origem controvertida e que tem sido traduzido por
"mutação". Para a China antiga, o nome de algo era considerado não apenas como um
rótulo arbitrariamente atribuído, mas, antes, uma expressão do ser mesmo daquilo que
em seu nome se deixa ver, se desvela. Essa concepção será desenvolvida mais tarde
por Confúcio, para quem a harmonia do mundo depende da retificação dos nomes. O
fato, portanto, de a tradição de sabedoria dos Kua ter sido originalmente designada
por "I" é da máxima importância*. A etimologia do ideograma “I” tem sido objeto de
grande discussão. Segundo alguns autores, o ideograma teria sua origem no desenho
de um camaleão, significando movimento (em virtude da agilidade dos lagartos) e
mutação (em virtude do mimetismo). A parte superior do ideograma (
) seria
resultante de uma estilização do desenho da cabeça, e a parte inferior *
As designações "Chou I" e "I Ching" se referem a fases distintas na elaboração dos textos que
vieram a acompanhar os Kua. Chou se refere à dinastia cujos fundadores, Wên c Chou, redigiram (segundo
a tradição) os textos referentes, respectivamente, ao Julgamento e as Linhas. O fato de o "I" ter passado a
chamar-se "Chou I" evidencia que, no decorrer da dinastia Chou, o acesso ao significado dos Kua passa a
se fazer através da Mediação dos textos de Wên e Chou, como também demonstra a prevalência cada vez
maior dos textos sobre as figuras lineares. Quando, na fase final da dinastia Chou, o “I” passa a ser editado
como um dos "Clássicos" ("Ching"), inicia-se a leitura dos próprios textos de Wên e Chou através das
chamadas "Dez Asas", que, em sua maioria, apresentam uma forte influência da escola confucionista. (A
tradição chinesa mantém, desde Ssu-ma Ch'ien, 145-86 a.C, que as Dez Asas são de autoria de Confúcio.
Há. entretanto, vários indícios que mostram ser essa hipótese discutível.) "Chou I" e "I Ching" são,
portanto, designações tardias. O título original seria apenas “I”. Nas próprias Dez Asas, h várias
passagens que se referem às "Mutações" ("I") para designar a obra. (
) resultaria do corpo e das patas do camaleão. Outros autores sustentam que o
ideograma em questão teria surgido de uma composição do ideograma de "Sol" (
) na
parte superior com o ideograma de "Lua" (
), estilizado na parte inferior. O sentido de
"mutações" se deveria então ao constante movimento aparente do Sol e da Lua no céu. Outros
elementos importantes para a elucidação do significado do termo podem ser encontrados nessa
hipótese. Sem dúvida, mutação é o fator central da visão de mundo que se consolida na China
no período imediatamente anterior à dinastia Chou. A observação do mundo em torno de si e a
observação do mundo em seu próprio interior levaram o homem chinês à constatação de um
fluir contínuo do qual nada escapa. É, porém, necessário atentar-se ao fato de que, assim como
no conceito budista de anicca (impermanência), essa mutação não era concebida corno
incidindo sobre seres ou objetos sofrendo modificações. Não há o que mude, não há quem
mude, pois só há o mudar. Supor que algo ou alguém muda é supor esse algo ou alguém fora da
mutação, sofrendo-lhe então a ação. Ante a universalidade e onipresença da mutação, não se
pode propriamente falar de algo ou alguém que muda. Má que se compreender, isto sim, os
modos e estágios da mutação e, para tanto, cunharam-se os Kua, que a tradição chinesa atribui a
Fu Hsi, o ser mítico em quem teve origem todo o mundo chinês.
Analisando-se a mutação, verifica-se que ela própria é invariável. Sendo onipresente e
absoluta,a mutação é imutável. Por isso, “I” significa mutação e não-mutação.
Há ainda um terceiro significado, que equivaleria, aproximadamente, a "fácil e simples".
No fundo da complexidade aparente do universo, jaz oculta uma "simplicidade". Ela consiste
nas tendências opostas e complementares em que sempre oscila a mutação. Atividade e
repouso, movimento e inércia, ascensão e declínio são os eternos e mesmos caminhos que
sempre o irrepetível percorre. Muda constantemente a natureza, porém sempre ao longo das
mesmas estações. Nunca as mesmas flores, mas sempre a primavera. Os fenômenos são
incontáveis e distintos uns dos outros, porém regidos, em suas tendências de mudança, pelos
mesmos e constantes princípios. Apreendendo-os, descobre-se o simples por detrás do
complexo, o que implica também no fácil, que é a trajetória c o percurso de tudo o que
acompanha o ciclo cm vigência. Fluindo em acordo com as circunstâncias, evita-se o atrito,
escapa-se ao desgaste. O caminho do fácil é duradouro e espontâneo, pois não exige esforço.
Assim como a água descendo a montanha, diante de nada recua, diante de nada insiste;
mergulha, desvia, contorna, adapta-se sem resistência e chega, pois, infalivelmente ao que lhe
corresponde.
Mutação, não-mutação, fácil e simples, são, portanto, aspectos de um só todo, o conceito
de "I"; ele expressa de forma completa e perfeita o conjunto das sessenta e quatro estruturas
lineares, os hexagramas.
Mas, ao raiar da dinastia Chou, essas estruturas deviam estar se tornando obscuras, pois
textos foram acrescentados, no intuito de se indicar, através de palavras, o significado que antes
os próprios Kua transmitiam. A tradição atribui esses textos ao rei Wên (Julgamento) e ao
duque de Chou (Linhas), com quem a dinastia Chou principia. Esses textos passaram a
acompanhar os Kua e, com o tempo, a tradição das "Mutações" ("I") passou a ser designada
"Chou I", uma referência à dinastia cujo início coincide com a redação dos textos, os quais,
cada vez mais, catalisaram a atenção em virtude do crescente velamento dos próprios Kua. Mas
o significado desses mesmos textos, séculos mais tarde, começaria a velar-se, exigindo novos
adendos explicativos e, no VI século a.C, surgem as chamadas "Dez Asas". A tradição atribui
as Dez Asas a Confúcio. Apesar de ser questionável se Confúcio teria, ele próprio, redigido
todas ou mesmo alguma das Dez Asas, é indubitável a forte influência de seu pensamento em
grande parte delas. Sem Confúcio talvez não se pudesse conceber a maioria das asas. Pelo menos como fonte básica de inspiração, é a
ele que esses textos remontam. Consta que o Chou I foi incluído por Confúcio em sua
edição dos "Clássicos" ("Ching"). Assim, a tradição das "Mutações" veio a se tornar
conhecida como o I Ching, o Livro (ou Clássico) das Mutações.
O fato de se ter acrescido, inicialmente, a indicação dos primórdios da dinastia
Chou ao ideograma “I” mostra que o acesso ao “I” já não se fazia mais diretamente,
como fora antes, mas recorria-se à mediação dos textos de Wên e Chou. Quando se
passa a designar o "I" como "Ching", evidencia-se o obscurecimento da via anterior e
o recurso aos comentários (Dez Asas), que procuraram esclarecer os comentários
(Julgamento e Linhas), que, por sua vez, procuraram esclarecer o original, os Kua. O
"I" é, portanto, um livro sem palavras, que fala na eloqüência silenciosa de suas
figuras lineares.
Disse um mestre zen que: "O dedo serve para apontar a Lua; o sábio olha para a
Lua, o ignorante para o dedo." Os textos todos que foram acrescidos ao verdadeiro
original as figuras lineares - são úteis e preciosos, mas somente quando não se
permanece neles.
Sobre o uso oracular do Livro das Mutações
O Livro das Mutações tem sido utilizado como oráculo desde a Antigüidade. Ao
longo da História da China, pode-se notar que alguns períodos têm dado menor ou
maior ênfase a esse aspecto, como ocorreu no VI século a.C. e durante a dinastia Han,
respectivamente. No Ocidente, seu uso oracular tem despertado um interesse e
fascínio excessivos. Lamentavelmente, toda sorte de abusos e erros tem se acumulado,
em virtude dessa visão parcial e distorcida. O I Ching não é apenas (nem
primordialmente) um oráculo. Ele é também um oráculo. E essa sua faceta 6,
inclusive, quase irrelevante se confrontada com a riqueza da sabedoria contida nos
Kua. O uso oracular do livro corresponde apenas a uma fase, digamos, primária,
quando ainda não sabemos aplicar por nós mesmos, às nossas vidas, os princípios
desvelados pelas figuras lineares, por não conseguirmos enxergar as correspondências
existentes entre os Kua e todos os fenômenos. O aspecto oracular é apenas uma nota
dentro do vasto complexo melódico do intróito ao I Ching. Mas, ainda assim, é uma
nota e como tal não deve ser ignorada, tanto quanto não deve ser exclusivamente
considerada. Wilhelm, em seu Apêndice sobre o oráculo, explica como se procede à
consulta (cf. Livro Terceiro), mas não se detém o suficiente num ponto que é de
importância capital, a saber, formulação da pergunta, e quase não menciona outro, o
ritual.
A formulação da pergunta tem um papel decisivo no êxito ou no fracasso da
consulta (no sentido da compreensão ou não da resposta obtida). O oráculo, segundo
a tradição chinesa, nunca falha. Suas respostas são sempre claras e precisas; porém o
nosso entendimento é, muitas vezes, turvo e confuso. O oráculo sempre mostra o que
é; nós, entretanto, muitas vezes não conseguimos ver o que ele nos mostra, pois não
queremos ou não sabemos ver. Todas as barreiras e obstáculos à compreensão da
resposta estão em nós e não no oráculo. Enquanto manifestação do inconsciente, o
oráculo usa a linguagem simbólica, que é própria daquele, e não o discurso
racionalizado que o consciente habitualmente articula. Para que o significado se
aclare, teremos de aprender o modo de concatenação dessas imagens simbólicas, ao
invés de insistirmos em tentar decodificá-las segundo padrões que lhes são estranhos.
A primeira grande dificuldade que enfrentamos é saber com clareza e precisão
o que buscamos. Só quem sabe o que procura pode encontrar. Na formulação da
pergunta, explicitamos para nós mesmos o que estamos buscando. A pergunta incorretamente formulada revela uma imperfeita compreensão do que procuramos
saber, o que, por si só, já dificulta ou mesmo impossibilita que o reconheçamos. Mas
o que é uma pergunta correta? Ela se caracteriza por sua intenção e por sua forma. A
intenção correta consiste na adequação ao propósito e finalidade do próprio oráculo,
ou seja, auxiliar o homem na busca da verdade, na busca de si mesmo, já que é em si
que ele há de encontrá-la. A consulta oracular, no sentido...
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