O Toninho não. Entrou ainda miúdo e nunca pensara bem se
realmente queria ser padre. Adaptou-se ao sistema interno,
encarrilou. Depois descarrilou.
Recordava-se bem da primeira manhã em que acordou
num dos quartos do Seminário. Abriu a janela em guilhotina,
empenada pelo sol e pelas chuvas, e aí se postou a mergulhar
a vista no que o rodeava. O dia nascera cinzento e, mesmo
que ele não se deixasse impressionar muito pelo aspecto da

29
atmosfera, sentiu o peso de uma tristeza que, por segundos,
lhe rondou o cérebro. Uma aragem fria obrigou-o a afastar-se
e descer os vidros. Lavou a cara na bacia em ferro de tripé
com manchas de ferrugem e sarro entranhado de anos e vestiu-
se com certo vagar. Não dormira bem, estranhou o colchão e a
almofada, duros e deformados pelo número de indivíduos a
que foram sujeitos suportar. Mas não foi apenas uma questão
técnica que lhe tirou o sono. Foi a sua nova situação.
Encontrava-se, pela primeira vez, longe da família e das
pessoas conhecidas, num ambiente estranho e até certo ponto
misterioso. Desde a sua chegada no dia anterior até àquele
momento, já se tinha arrependido dezenas de vezes da sua
escolha. O que lhe ofereceram não era o que esperava. Tinha
em mente um lugar de ordem, de paz e reflexão. E que
encontrara? Uma balbúrdia numa casa enorme e escura com
odores de sujidade e mofo, onde era obrigado a conviver com
rapazes não muito diferentes daqueles que andavam na rua
livres de tanta renúncia.
Calçou as botas e saiu para o corredor. Outros passavam
por si sem lhe dizerem bom dia, indiferentes, os olhos
estremunhados de sono. Juntou-se-lhes silencioso e com eles
desceu os cinco lanços de escadas que os separavam da capela.
Fez o possível por se concentrar nas orações da manhã e
durante a missa. Achou interessante a recitação em conjunto
de alguns salmos a que chamavam
laudes,
como vira escrito
no topo da página do livro de capa castanha do colega ao lado.
Esforçou-se por cantar com os outros, mas desafinou sem
querer, pois desconhecia os cânticos. Até que o colega do lado
lhe mandou uma cotovelada de admoestação pela ilharga e
ele calou-se envergonhado.
Nada era igual à liturgia da velha igreja que frequentara
desde miúdo na aldeia. Aí parecia tudo mais natural, mais

30
familiar e menos pomposo. O padre Granjo, a precisar de
reforma, pigarreava a missa e o terço sem grandes
preocupações místicas, resumindo os rodeios e cortando a
prosápia espiritualeira. Falava do que sabia e todos o
entendiam. Ali os padres falavam de outro modo, com certo
requinte de frases e entoação solene. Eram doutores em
teologia, concerteza conheciam todos os subterfúgios da arte
de convencer na fé.
Sentia-se um pouco desorientado e forçava-se a redobrar
a atenção para não se ajoelhar no momento de sentar-se, ou o
contrário. No entanto, era de tal forma novo aquilo que o
rodeava, que facilmente se perdia em conjecturas visuais.


You've reached the end of your free preview.
Want to read all 124 pages?
- Spring '14
- GBALERIA
- Luz, Seminário, Braga, Loucura