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Sua paixão por Amélia tinha realmente uma virgindade. O conquistador havia amado na mulher todas as graças
e encantos, mas nunca até então havia adorado um pé. Devia, pois, experimentar realmente as sensações inebriantes de
um primeiro amor.
Na sala dançava-se a sexta quadrilha.
— Acho-a pensativa, disse Leopoldo, reparando que o lindo rosto de seu par, ordinariamente animado por uma
gentileza vivaz, estava agora amortecido pela reflexão.
Amélia fitou nele seus grandes olhos ingênuos.
— E não tenho razão?...
Leopoldo calou-se. Tinha compreendido o pensamento de Amélia. Na véspera de decidir de seu destino, de
ligar eternamente sua existência, a mulher deve ter desses instantes de recolhimento íntimo. A dúvida agita-se no seio
da fé mais profunda, o receio no âmago da esperança mais risonha. As flores do coração, como as da natureza, têm um
verme, que as babuja.
Que podia Leopoldo dizer a essa alma perplexa? Aumentar-lhe a dúvida, dar força às vacilações, não seria
digno; parecia-lhe uma sedução. Confortá-la em sua fé, animar-lhe a esperança, apontar-lhe para um futuro cheio de
venturas, fora nobre e generoso; mas faltava-lhe abnegação para tanto.
Terminada a contradança, Amélia pelo braço do par deu uma volta pela sala. A um aceno de seu leque,
Horácio, que estava conversando em um grupo, chegou-se.
— Chame papai. São horas!
Enquanto o leão procurava o Sales para preveni-lo do desejo de sua filha, Amélia dirigiu-se ao toucador.
Leopoldo ficara surpreso de ver a moça falar a Horácio, e com um tom bem expressivo de intimidade.
— Não pensava que se conhecessem... tanto! disse ele com a voz comovida.
— Pois é com ele...
O rubor que tingiu as faces da donzela rematou a frase com a sublime eloqüência do pudor.
— Não sabia? perguntou a moça para disfarçar.
— Não!
— Como o Sr. diz este
não!
Com efeito, a voz de Leopoldo tivera uma vibração profunda, quando pronunciara aquele simples monossílabo.
— Desejava que não fosse ele? perguntou a moça com certa ansiedade.
— Por quê?
Aproximava-se Horácio dando o braço a D. Leonor e seguido pelo negociante. Amélia separou-se de seu
cavalheiro e, levantando a cortina de veludo do toucador, voltou-se:
— Há de me dizer! insistiu.
— É preciso? perguntou Leopoldo, e seu olhar desceu lentamente do rosto da moça à fímbria do vestido.
Amélia empalideceu; a cortina, escapando de sua mão trêmula, ocultou-a.
— Conhecias Amélia? perguntou Horácio, enquanto esperava que as senhoras saíssem do toucador.
— Estás admirado, sem dúvida! retorquiu Leopoldo secamente.

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O leão fitou no companheiro um olhar interrogador; mas ocorreu-lhe de repente uma idéia, que lhe trouxe aos
lábios um sorriso de ironia. Lembrara-se do aleijão.
A mulher amada por Leopoldo não podia ser Amélia. Mas quem sabe se o idealista capaz de adorar uma
monstruosidade, o espírito severo que desdenhava a beleza material, não sofria a sedução irresistível do mimoso
pezinho?


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- Fall '08
- Staff
- Rio de Janeiro, Amor, fogo, Pensamento, Vinho, Esfinge