para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?
Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia
a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria
da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia,
apostar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a
responsabilidade social — talhei nessa matéria de (...) a está-
tua pensada da minha existência.
Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou
aquele modo estético da vida. Do pouco que lia aprendi a ex-
trair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava,
apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo dis-
tante e [...], prolongar mais dentro de mim. Esforcei-me
porque todos os meus pensamentos, todos os capítulos quo-
tidianos da minha experiência me fornecessem apenas sen-

sações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orien-
tei essa estética para puramente individual. Fi-la minha
apenas.
Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu he-
donismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Len-
tamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensi-
nei-me a ser insensível quer para os apelos dos instintos, quer
para as solicitações (...)
Reduzi ao mínimo o meu contato com os outros. Fiz o
que pude para perder toda a afeição à vida, (...) Do próprio
desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de
cansaço se despe para repousar.
Não sei que vaga carícia, tanto mais branda quanto não
é carícia, a brisa incerta da tarde me traz à fronte e à com-
preensão. Sei só que o tédio que sofro se me ajusta melhor,
um momento, como uma veste que deixe de roçar numa
chaga.
Pobre da sensibilidade que depende de um pequeno mo-
vimento do ar para o conseguimento, ainda que episódico, da
sua tranqüilidade! Mas assim é toda sensibilidade humana,
nem creio que pese mais na balança dos seres o dinheiro su-
bitamente ganho, ou o sorriso subitamente recebido, que são
para outros o que para mim foi, neste momento, a passagem
breve de uma brisa sem continuação.
Posso pensar sem dormir. Posso sonhar de sonhar. Vejo
mais claro a objetividade de tudo. Uso com mais conforto o
sentimento externo da vida. E tudo isto, efetivamente, por-
que, ao chegar quase à esquina, um virar no ar da brisa me
alegra a superfície da pele.
Tudo quanto amamos ou perdemos — coisas, seres, sig-
nificações — nos roça a pele e assim nos chega à alma, e o
episódio não é, em Deus, mais que a brisa que me não trouxe
LIVRO DO DESASSOSSEGO

nada salvo o alívio suposto, o momento propício e o poder
perder tudo esplendidamente.
Não sei quantos terão contemplado, com o olhar que
merece, uma rua deserta com gente nele. Já este modo de
dizer parece querer dizer qualquer outra coisa, e efetiva-
mente a quer dizer. Uma rua deserta não é uma rua onde não
passa ninguém, mas uma rua onde os que passam, passam
nela como se fosse deserta. Não há dificuldade em compreen-
der isto desde que se o tenha visto: uma zebra é impossível
para quem não conheça mais que um burro.


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- Fall '19
- Amor, Poesía, Inconsciente, sono, CONHECIMENTO, Pensamento